O amor impossível é o verdadeiro amor?

Existem dois tipos de amor? A escritora e colunista Cristina Guedes entende que sim e nos fala deles aqui. Um amor, velho conhecido nosso, que muda conforme o contexto cultural das gerações, e que passa por transmutações e desencantos, e outro amor bem mais profundo, metafísico, transcendendo modas e sistemas. Este outro amor tem sua fome em nossas células, entranhado no DNA.

Outro dia escrevi um artigo sobre amor e relacionamentos. Depois, escrevi outro sobre o amor de novo. Depois outro sobre intimidades. Depois outro, e outro, e mais outro... Onde vou parar? Realmente, as coisas que você se arrepende são aquelas que não fez. Mas os dois artigos mexeram com a cabeça de dois escritores amigos que me responderam: "Mas... afinal, o que é esse amor que você falou, Cristina?"
E estão esperando de mim este texto, com ouvidos muito atentos, uma resposta "profunda". Sei apenas que há um amor mais comum, do dia-a-dia, que é nosso velho conhecido, um amor datado, divisado, um amor que muda com as décadas, o amor prático que rege o "eu te amo" ou "não te amo". Eu, 39 anos, jornalista, poeta e taróloga, brasileira acordada, já vi esse amor mudar muito entre as pessoas e muito nos corações de amigas e amigos. Quando era estudante de jornalismo, no final dos anos 80, o relacionamento com alguém era um desejo romântico, um sonho político, contra o sistema, amor da liberdade, a busca de um "desregramento dos sentidos" ou um soneto de amor de Pablo Neruda. Depois, nos anos 90, foi ficando um relacionamento de consumo, um amor de mercado, uma progressiva apropriação indébita do "outro".

O ritmo do tempo acelerou o amor, o dinheiro contabilizou os relacionamentos, matando seu mistério impalpável. Hoje, temos controle remoto, internet, namoro virtual, já não sabemos por que "amamos" e por que nos "relacionamos", temos medo de nos perder, de nos ver ou de ver o outro no amor e fracassar na produção.
Interessante, a cultura americana está criando um "desencantamento" insuportável na vida social. O amor é a recusa desse desencanto.

Por isso, permitam-me hoje falar do amor mais "profundo" e falar de um modo mais metafísico, mais seminal, transcendendo décadas, modas, sistemas e até meus arcanos. Esse amor é como uma demanda da natureza, ou melhor, do nosso exílio da natureza. É um amor quase como um órgão físico que foi perdido.
Pois, amigos e amigas, esse amor existe dentro de nós como uma fome quase que "celular". Não nasce nem morre das "condições históricas"; é um amor que está entranhado no DNA, no fundo da matéria. Não é de espantar. Ao contrário, é uma pulsão inevitável, quase uma "lesão oculta" dos seres expulsos da natureza daquele paraíso perdido.
Essa busca de relacionamento com amor bate em nós como os frêmitos primordiais das células do corpo e como as fusões nucleares das galáxias; esse amor cria em nós a sensação do Ser, que só é perceptível nos breves instantes em que entramos em compasso com o universo do outro.

A máquina da vida se explica - Nosso amor é uma reprodução ampliada da cópula entre o espermatozóide e o óvulo se interpenetrando. Por obra do amor, saímos do ventre e queremos voltar, queremos uma "reintegração de posse" de nossa origem celular mais feminina, indo até a dança primitiva das moléculas. Então, somos grandes células que querem se reunir, separados pelo sexo, que nos dividiu ("sexo" vem de "secare", em latim: separar, cortar).
E o amor cria momentos em que temos a sensação de que a "máquina do mundo" ou a máquina da vida se explica, em que tudo parece parar num arrepio, como uma lembrança remota. Como disse Artaud, o louco, sobre a arte (ou o amor): "A arte não é a imitação da vida. A vida é que é a imitação de algo transcendental com que a arte nos põe em contato".
Talvez, a arte não é a linguagem dos relacionamentos? E não falo aqui dos grandes momentos de paixão, dos grandes encontros, dos grandes beijos e abraços - eles podem ser enganosos. Falo de brevíssimos instantes de felicidade sem motivo, de um mistério que subitamente parece revelado no outro. Algo inexplicável.
Há, nesse amor, uma clara geometria entre o sentimento e a paisagem, como na poesia de Francis Ponge, quando o cabelo da amada se liga aos pinheiros da floresta ou quando o seu brilho ruivo se une com o sol entre os ramos das árvores ou entre as tranças do ser amado e tudo parece decifrado. Mas não se decifra nunca um relacionamento amoroso, como a poesia não se decifra. Como disse alguém: a poesia é um desejo de retorno a uma língua primitiva. O amor também. Melhor dizendo: o amor é essa tentativa de atingir o impossível.

Ainda fico encantada quando sei que é urgente e emergente amar. Sim, a ação, eis o que a mágica da vida visa! O que quer fazer sobre o seu relacionamento, faça. Tenha necessidade, perca essa opacidade. Dê vexame para não deixar descansar essa chama fortíssima. Quase sempre acenda a luz, realce, purpurina, é melhor. Será preciso uma surpresa?

Portanto, que os arcanos da Roda da Fortuna, a Torre, o Ceifador e o Julgamento já tenham lugar nos seus relacionamentos que precisam passar por grandes mudanças, não fiquem apenas como os convidados de honra das cartas de tarô.
Mudem e realizem para não deixar o amor atacado, emprestado, complicado, trincado, pifado, geneticamente modificado por vocês. Peçam e serão atendidos.

Cristina Guedes
Escritora, poeta e taróloga
Autora dos livros "A Casa do Mundo no Reino dos Arcanos" e "Quando riem as maçãs"
divinaimperatriz@hotmail.com
JOÃO PESSOA/PB

5 comentários:

  1. Gostei muito do que a autora destaca. É como se o homem e a mulher viessem a este mundo financiados pelo Amor, tendo o que desejam, mas ainda temendo a entrega. Este suprimento de amor que fala a Cristina vem por meio da fé da Palavra Expressa. "Se credes tudo é possível", disse Jesus.

    Frei Augusto Tarzo

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  2. Olá Cristina!
    Agora sei como me descobriu! : ) Também escrevo para o Absoluta e resolvi navegar pelos textos hoje.

    Gosto de pensar no amor como uma real exigência da alma, como você colocou, uma fome.

    Abraços!

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  3. Maravilhoso!
    Tem uma habilidade para se expressar que torna o assunto inagualável.
    Drª Leila Sara

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  4. Sua mediunidade continua latente

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  5. se liga cristina o mundo passa agente fica

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